segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Seguindo os passos de Machado de Assis


Machado de Assis é um dos meus atuais objetos de estudo. Acabo de ler a Biografia Machado de Assis: um gênio brasileiro do jornalista Daniel Piza. Achei-a excelente. Gostei do ritmo ágil e moderno com que o livro foi escrito, e apreciei a clareza com que os fatos são apresentados. Muitas vezes, o que ocorre nas biografias é que elas abandonam o personagem retratado – depois de uma breve contextualização da época ao qual ele está inserido – solto no tempo. Neste caso, Piza faz uma introdução satisfatória sobre as mudanças de cada época e apresenta a forma com que elas influenciaram na escrita de Machado, principalmente em relação as crônicas que foi o gênero literário em que o autor certamente foi mais prolífico.

O texto não chega a ser tão específico sobre a intimidade de Machado a ponto de nos dizer as cores das cuecas que ele usava ou o que ele comia no café da manhã, até porque ele era uma pessoa reservada (mas estas são ordinariedades que a ninguém mais interessam, apenas a um pesquisador obcecadamente detalhista como eu). Tais miudezas, talvez seja inacessíveis se tratando de Machado, um pessoa que sempre manteve sua privacidade resguardada. Dessa leitura, além de Machado como grande cronista, o que emerge para mim é o sofrimento do autor por causa dos problemas de saúde; os ataques epiléticos constantes, as dores no estômago por causa dos remédios fortes e as inflamações na visão, forma problemas que o impediam de trabalhar por grandes períodos. Mesmo assim ele sempre manteve uma produção vasta, publicando em média um livro a cada dois ano, entre romances, contos, poesias, peças de teatro e traduções (sem falar nas crônicas semanais publicadas em jornais).

Machado era um abolicionista, mas monarquista. Ele era um cético. Não tinha o otimismo ingênuo de crer que a mudança das pessoas no comando alteraria a índole dos políticos. Machado considerava o país imaturo e sem uma tradição para virar uma democracia. Mesmo tratando de temas relevantes para a política nacional em suas crônicas, Machado parece abster-se de um posicionamento mais rígido entre um lado e outro de algumas questões. Não faz uma campanha para as melhores condições dos escravos libertos, não escreveu uma linha sobre a Revolta da Armada e na Guerra do Paraguai adota uma postura nacionalista e ufanista. Machado não ignorava alguns dos graves problemas nacionais, mas preferia comentar como se estivesse observando tudo de fora, ou fingindo que o problema não existia. Nesse sentido Ângelo Agostini da Revista Ilustrada era muito mais combativo e engajado no debate sobre a luta por transformações políticas e sociais. Acho que por ser um funcionário público, ele evitava fazer inimizades ou críticas severas que angariassem prejuízos para sua vida pessoal. Se ter consciência de um problema grave e ignorá-lo propositalmente para não se incomodar é um pecado, podemos eleger a omissão com um dos defeitos machadianos. Não uma falha enquanto autor, ou literato, mas uma falha enquanto humano que compactua com atrocidades sem levantar sua voz de maneira firme e incisiva contra elas.

Por causa dos problemas de saúde, por covardia, ou para fazer um tributo ao filósofo Sócrates, Machado jamais afastou-se do Rio de Janeiro. Assim como o sábio grego nunca deixou Atenas, e até preferiu a morte ao invés de abandonar sua cidade, o ilustre morador do Cosme Velho, salvo raras exceções, quase nunca se afastou da capital do Império. Ele passou temporadas em Friburgo, Petrópolis e Barbacena, em geral para se recuperar dos problemas de saúde. Todos destinos como um raio de distância inferior a 300 Km de distância. Esta falta de visão do mundo exterior através dos próprios olhos, davam-lhe certo provincianismo existencial, mas não intelectual. Pois ele lia os jornais franceses, traduzia os melhores literatos do francês e do inglês, estudava grego, enfim, era um homem da cultura. Viajava através do pensamento para o passado distante e vivia as aventuras de seu tempo através da vida dos personagens da literatura universal.


Talvez, meus leitores pensem que estou sendo muito severo em minhas observações, mas estou mais interessado na psicologia do homem, do que na manutenção do mito, ou na revelação da identidade do autor, por isso dou-me a liberdade de fazer algumas suposições extravagantes.

Uma das viagens de Machado teve um significado particular, quando partiu em 1880 para Nova Friburgo, ele sentia-se quase morto quando. Ele já não mais percebia-se parte do mundo dos vivos. Foi assim, de tal estado psiquico, que nasceu a grande virada na sua obra e surgiu Brás Cubas. No mesmo período de intenso sofrimento, foi também redigido O Alienista, um dos seus contos mais celebres. Machado prova sua genialidade ao supera um período de grave dificuldade física do qual emergiu, após intenso sofrimento, com duas sensacionais obras de arte. Peças da literatura nacional que continua a ser lidas, referidas e estudadas como marcas na mudança dos rumos das letras no país.

Na primeira, o autor personagem Brás Cubas vai traçando o próprio perfil, e Machado nos apresenta um homem que pode falar sem papas na língua por ter a liberdade que só a morte permite. Na segunda, uma verdadeiro estudo sobre a loucura e uma crítica a ciência dogmática são expostos através da exposição dos experimentos do alienista Simão Bacamarte.

Não perderei meu tempo como comentários longos sobre esta duas obras muito bem conhecidas, nem tampouco falarei da ironia de machadiana, um lugar tão comum na análise literária que parece já não haver mais nada ser dito sobre este ponto. Também não perguntarei mais uma vez a eterna dúvida: “Capitu traiu, ou não traiu Bentinho?”. Menterei-me na superficialidade nos comentários desavergonados. Apenas destaco que a biografia não me esclareceu a origem do apelido Bruxo do Cosme Velho, que pelo que saiba foi uma atribuição póstuma que partiu de Carlos Drummond de Andrade, por razões que ainda me inquietam.


A presente biografia também não menciona em nenhum momento as especulações sensacionalistas que recentemente foram defendidas por um pesquisador, segundo a qual, Mário de Alencar, filho de José de Alencar, seria na verdade filho de uma relação extraconjugal de Machado de Assis com a esposa de Alencar. Em consequência de tal hipótese, o autor de tais suposições afirma que o romance Dom Casmurro teria traços biográficos relacionados ao adultério cometido por Machado de Assis.


Se o tal apelido tem alguma magia escondida, ou se as fofocas das más línguas de outrora tem eco no presente, isto no quadro geral, pouco acrescenta ao monumento que Machado representa na literatura nacional.


REFERÊNCIA

PIZA, Daniel. Machado de Assis: um gênio brasileiro. Ed. 2º. São Paulo: Imprensa Oficial SP, 2006. Número de páginas: 416

Para maiores informações, leia o texto do jornalista Daniel Piza, autor da supracitada biografia, onde ele deleuzianamente faz a desconstrução de alguns mitos machadianos.

http://blogs.estadao.com.br/daniel-piza/mitos-machadianos/

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